A pornografia da morte ( CLÁUDIA LAITANO )
"Há
exatos 15 anos, quando a rede mundial de computadores ainda não era
tão mundial assim, o Brasil assistiu à eclosão de um fenômeno que viria a
crescer junto com a internet nos anos seguintes. Poucas horas depois
do acidente que matou os integrantes da banda Mamonas Assassinas, em
março de 1996, chegavam à rede imagens chocantes de corpos mutilados,
espalhados pela mata onde caiu o avião.
Nunca se soube
exatamente como as fotos vazaram, mas a rapidez com que elas se
disseminaram era inédita até então e anunciava o início de uma nova
era: a tecnologia de compartilhamento instantâneo de informações,
associada à humana inclinação para a curiosidade mórbida, ampliava
exponencialmente o alcance de uma das mais desprezíveis formas de
invasão da privacidade – aquela em que as vítimas não têm qualquer
chance de defesa. O fenômeno ganhou um nome, “death porn”, algo como
“pornografia da morte”.
Na pornografia da morte, o corpo é
banalizado e subtraído do seu conteúdo humano, como na pornografia do
sexo. Quem vê uma foto de uma mulher nua em uma revista não está
preocupado em saber se ela paga aluguel ou se é uma filha amorosa de
pais velhinhos. O corpo é reduzido à função básica de satisfazer uma
fantasia – e qualquer subjetividade só é admitida no jogo quando serve
ao propósito dessa fantasia.
No caso da pornografia da morte, o
corpo também deixa de ligar-se a uma pessoa para tornar-se o objeto de
um voyeurismo mórbido. Se a pornografia convencional busca o prazer do
sexo sem obstáculos e sem complicação, a pornografia da morte é o
exercício de uma espécie de sadismo sem vítimas e sem punição.
A
história é recheada de cadáveres célebres usados como propaganda
política – tanto para honrar a memória da vítima quanto para sepultá-la
simbolicamente. Durante a Revolução Francesa, o quadro A Morte de
Marat, de Jacques-Louis David, foi usado para retratar o sanguinário
líder revolucionário como um mártir heroico da causa do povo. Mais
tarde, quando os ventos políticos mudaram, o quadro foi banido da
França.
As clássicas imagens de Che Guevara morto nas selvas da
Bolívia serviram tanto para provar que ele fora derrotado quanto para
alimentar o mito quase religioso que cercaria sua memória nos anos
seguintes. Mortos costumam ser muito obedientes ao uso que os mais
vivos decidem fazer deles.
No caso de Kadafi, no entanto, o
conteúdo pornográfico e aleatório das imagens de sua execução parece
ter superado qualquer subtexto político. Os inimigos do ditador líbio
podem argumentar que mostrá-lo morto era indispensável, mas a sensação é
de que algum limite inédito foi transposto nessa exibição obscena do
cadáver.
Houve um tempo em que esse tipo de imagens seria
filtrado antes de chegar à grande imprensa. Não mais. Um observador de
posse de um celular é o que basta para que o conteúdo extrapole
qualquer tentativa de mediação ou pudor. A decisão de divulgar ou não
uma imagem não está mais na mão de quem pode achar importante refletir
sobre o que é ou não adequado divulgar ou mesmo de quem deseja fazer o
uso político dela – mas na ponta dos dedos do voyeur tecnológico mais
próximo."